segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Parte 1

É difícil descrever uma cena, um flash. Onde tudo é silêncio, somente imagens. Mas de nada adiantaria ver o que vejo, senão da forma que vejo. Há aqueles filmes em que a garota esquisita entra, todos olham pra ela com desdém, e ela mantém os olhos baixos. Eu olho pra cada um, cada olhar, e são todos desviados. É impossível explicar o quanto convivo mal com a indiferença, por mais que seja apenas impressão, uma paranóia. Ajo de forma terrível e afasto a todos. Tem uma linha, solitária, à minha frente. Queria dividi-la com alguém, com mais de um alguém, talvez, mas tem sido tão difícil. Parece que todos já tem outras linhas; tão mais importantes, confortáveis e confiáveis de se seguir, que a minha parece frágil, pouco tentadora. Meu erro pode ser não impô-la a ninguém, já que dividir é doloroso, principalmente quando pisam nela, apontando seus fiapos soltos. Há alguns fiapos com os quais convivemos bem, e estão bem ali... Mas a pessoa que divide se incomoda e quer tirá-los, puxa-os, o que dói ainda mais. Mas é nessa mesma linha que permaneço, desde sempre, e me surpreendo com suas muitas formas.

É início de um dia claro, em que as primeiras luzes cutucam meus olhos, incomodam-os, exigem que se abram. Há nessa claridade algo de libertador, um espaço infinito. Um delicioso odor invade o quarto; vem do cheiro de terra molhada e das flores que a pequena senhora rega no apartamento ao lado. Ao levantar, piso em uns papéis espalhados pelo chão, amassando-os ainda mais. São poemas escondidos, sem beleza ou música alguma. Não há o que fazer quanto à desordem, pois ela reflete meu estado. Mesmo que tentasse desfazê-la, uma nova viria em seguida, talvez ainda maior. Melhor deixar como está.

Já faz mais de um ano que estou nesse lugar, e a cada dia sinto que faz mais parte de mim. Cada canto é totalmente meu, e posso transformá-lo como bem quiser. Minha sensação de liberdade se dá tanto por essa possibilidade de mudança constante quanto pela amplitude do espaço pela falta de qualquer elemento desnecessário. Lá estão, minhas estórias e canções favoritas, sempre ao lado. Também os filmes, as revistas e os discos. Até as comidinhas, os temperos, e as frutas matinais. Tudo posto de forma prática e harmônica. As grandes janelas renovam o ar da manhã e revelam um amplo cenário da cidade que começava a ganhar vida.

A cabeça pesada é o sinal da falta de café e eu arrasto os chinelos penosamente para a cozinha. Observar o fogo me dá um imenso prazer. Tem algo na luz, no calor e na energia que prende meu olhar e abre todos meus pensamentos. E foi quando as primeiras bolhas da água que fervia apareceram que eu me lembrei do incidente do dia anterior, causador de tanta confusão, que ainda aquecia e corava minhas faces.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Vinho

As batidas soavam contínuas, interrompendo a calmaria de seu denso mar, como pedras a perturbar as águas, espalhando ondas crescentes pela sua superfícia lisa. O som que vinha de trás da porta deixou os olhos sensíveis à luz e também à lucidez e foi por esta que se levantou de um pulo, os pés doídos de salto correram depressa. As batidas continuavam, impacientes.

"Lea, está aí?", soou a voz masculina. Bate, bate, bate.

Tinha medo do que sairia de sua voz. Das muitas sensações que tinha, não sabia qual delas soaria mais alto. Tinha raiva, sim, estava tão frustrada! Isso são horas de chegar? Mas afinal, finalmente, não? Anseava tanto por esse momento que transbordava felicidade, nervosismo, até medo. Qualquer que fosse a causa, suas mãos tremiam, pouco ágeis defronte ao espelho, ao arrumar depressa os cabelos levantados de um lado pelo travesseiro. Que cara péssima. Choque. Pousou as mãos na mesa, atenta. As batidas cessaram. Amarrotada, tonta e descalça correu à porta e escancarou-a. A surpresa pelo ato brusco surgiu na parede oposta, que logo se desvencilhou em um sorriso, ocupado pelo cigarro, os olhos fixos, provocantes. Bangue! Bateu novamente a porta na cara da razão única por toda confusão que sentia. Jogou-se impedindo inutilmente uma possível abertura. Ofegava e observava no quarto as marcas de sua espera, tudo tão patético quanto ela. Os saltos jaziam jogados à um canto, não muito longe do par de taças tombadas, uma delas ainda com resquícios da metade do vinho que faltava na garrafa, sua única companheira naquela noite de horas lentas. Suspiro.

Ora, para quê? Girou novamente a maçaneta, delicada agora, apreensiva. O ar saturado de cigarro invadiu o quarto, fruto do ar de sua boca... No chão, um bilhete: "Me espere amanhã, às oito." Se fechou mais uma vez, em silêncio, ao lado do relógio que denunciavam as três primeiras horas. Melhor fingir que nem aconteceu.

No dia seguinte comprou um whisky.